Uma mentalidade digital do profissional jurídico a partir da Complexidade: lidando com o Ciberespaço e a Ciberlinguagem no Direito

 

Como a percepção da complexidade pode ajudar o profissional a se reaperfeiçoar na era digital e de grandes avanços tecnológicos

 

Parece paradoxal, mas a complexidade, como afirmam diversos autores – dentre eles Clemente Nóbrega -, é também uma estratégia natural para a solução de problemas. Um exemplo histórico é o do Império Romano, que (vou dizer isso de forma muito simplificada) foi expandindo suas conquistas territoriais, mas, para isso, dependeu de muitos esforços para manter esse status. Em dado momento, a situação exigiu um ritmo tão insustentável para manutenção dessa expansão que surgiram inúmeras crises, até o colapso efetivo do império, para que se percebesse a necessidade de mudança de estratégia.

Com a era digital, do mesmo modo, precisamos passar por um processo de recontextualização (pessoal e profissional) que nos leve a perceber com clareza a complexidade imposta a partir das novas tecnologias, sobretudo na área do Direito, para que essa percepção – que vai além de conhecer as soluções tecnológicas do momento –  ajude o profissional jurídico a desenvolver um “pensamento digital”, para aperfeiçoar sua forma de atuação e construir soluções adequadas ao contexto atual da sociedade.

Vamos, então, falar um pouco sobre esse contexto digital.

 

Ciberespaço, Ciberlinguagem e Inteligência Coletiva

Desde as décadas de 60 e 70, com o surgimento dos primeiros microprocessadores, estamos cada vez mais imersos no que se convencionou chamar de Ciberespaço. O termo foi inventado pelo escritor norte-americano William Gibson, no início dos anos 80, em seu livro de ficção científica Neuromancer, e designa o universo das redes digitais – espécie de espaço de comunicação aberto pela interconexão de computadores e das memórias desses equipamentos, permeado pela imensidão de informações que abriga.

Três princípios básicos orientaram o crescimento do Ciberespaço, ao longo das décadas: a interconexão, a criação de comunidades virtuais e a inteligência coletiva. E, talvez, a interconexão seja o princípio mais importante do Ciberespaço, porque permitiu a criação de um outro conceito igualmente importante, a Cibercultura, proposto por Pierre Lévy também nos anos 80.

Aqui, de forma mais simplificada, podemos entendê-la como tudo aquilo que foi e está sendo produzido por nós por meio da comunicação virtual, a partir da interação entre computadores e usuários do Ciberespaço, isto é, das redes digitais de computadores e de outros suportes tecnológicos, como smartphones.

E, definitivamente, estamos migrando cada vez mais de um espaço físico de comunicação para o espaço virtual – aqui entendido não como irreal, mas com potencial de materializar, de tornar algo concreto.

Ocorre que é a partir da linguagem que aprendemos a perceber o que acontece à nossa volta, a realidade. E as novas tecnologias, assim como o desenvolvimento do Ciberespaço, têm provocado e vêm provocando mudanças sociais e alterações nas formas de se comunicar absurdas! Portanto, é justamente a linguagem desenvolvida por nós, no Ciberespaço, que produz essa nova realidade. Linguagem essa que também é transformada por essa nova realidade, produzindo uma Ciberlinguagem, bem específica, desenvolvida dentro da Cibercultura.

É o que explicita o filósofo Vilém Flusser, quando diz que a língua é a nossa realidade e que esta também cria a realidade. Segundo Flusser, é por meio de nossos sentidos que recebemos e percebemos as palavras. E é através do que o autor chamou de “intelecto” que ocorre o entendimento, a percepção da realidade. “Ele (o intelecto) consiste de palavras, as compreende, as modifica, as reorganiza e as transporta ao espírito, o qual possivelmente as ultrapassa”. Para Flusser, a realidade é criada pela língua e pelas palavras que falamos.

E, neste ponto, nos deparamos com uma questão essencial da atualidade. Afinal, você já se questionou por que um coletivo tão grande de pessoas, por todo o mundo, se interessa cada vez mais por estar nessa comunidade virtual e por ajudar a constituí-la?

E eis que chegamos ao terceiro conceito relacionado ao pensamento digital, a Inteligência Coletiva. Algo que almejamos, mesmo que inconscientemente, porque a ação de transmissão e recepção de informações, no mundo virtual, pode sofrer interferência em qualquer etapa do processo, de emissores e receptores – transformando o ciberespaço num ambiente criador e transformador de realidades. Daí o potencial “materializador” do ambiente virtual, bem longe do caráter irreal, comumente difundido.

Levy ainda traz um ponto conceitual que hoje estamos cada vez mais habituados, mas sobre o qual precisamos criar uma consciência: o conceito de inteligência coletiva carrega a noção de horizontalidade, isto é, as opiniões emitidas pelas pessoas ao redor do Globo tem a possibilidade de circular e sofrer um processo de crítica, e, com isso, cria-se a noção de comunidade global (aldeia global, já mencionada por Macluhan), em que a troca de informações é incentivada com um exponencial aumento da produção de linguagens.

Para Pierre Lévy, o “computador” e tudo o que veio com ele, ao longo das décadas, contribuíram para modificar nossa forma de “ler” a realidade, refletindo diretamente no modo como estruturamos o pensamento. A informática, mais do que a arte de automatizar cálculos, contribui “para estruturar os espaços cognitivos dos indivíduos e das organizações”.

Compartilho, aqui, um exemplo que correlaciona a complexidade, que mencionei no início deste texto, com o que vivemos hoje, mesmo sem perceber a complexidade do ciberespaço e das suas consequências diretas e indiretas em nossa vida (e que ilustra quantas coisas estão acontecendo no Ciberespaço enquanto você lê este artigo):

 

 

 

Desse modo, e a partir de tudo o que compartilhei neste ensaio, podemos concluir que conhecer a representatividade da complexidade atrelada ao Ciberespaço, à Cibercultura e à Inteligência Coletiva nos ajuda, dentro do Direito, a:

 

  • Perceber que a complexidade é benéfica, mas chega a um ponto em que as estruturas que vão sendo criadas por ela própria começam a colapsar. A ordem dá espaço à desordem e, para isso, novas soluções deverão surgir. No Direito, algumas visões e conceitos vão perdendo o sentido, pois as estruturas complexas precisam ser repensadas para trazer novas respostas;

 

  • Reparar que precisamos “arejar” os rígidos conceitos jurídicos, mesclando-os e somando-os a outras áreas do conhecimento e interagindo com pessoas de setores diversos, nos tornando dispostos a ouvir e a conhecer com a mesma curiosidade que nos move no mundo virtual. A inteligência coletiva gerada no ciberespaço traz a horizontalidade, a quebra de “ordens” verticais, que passam a perder sentido;

 

  • Cada vez mais, abraçar o pensamento digital, em prol da construção de uma nova prática jurídica e da proposição de soluções mais adequados para responder as demandas da sociedade contemporânea;

 

O que me diz sobre isso?

 

Sílvia Piva –  Nau d’Dês