Leonardo Werner*
Imagine que a partir do momento em que você abre os olhos pela manhã, olhe pela janela e, sem usar qualquer tipo de óculos, uma mensagem em realidade aumentada (AR) aparece diretamente para você exibindo a previsão do tempo para o dia. Felizmente, é um dia de sol perfeito para dar uma corrida no parque. Ao se exercitar, as informações sobre a distância e a rota que está percorrendo, bem como as calorias queimadas, vão aparecendo no campo da sua visão sem a necessidade de verificar o telefone nem seu smartwatch. Dessa forma, você consegue manter o foco no seu ritmo. Ao longo do dia, na medida em que passa por uma variedade de situações, ambientes e compromissos diferentes, informações relevantes e personalizadas são entregues diretamente aos seus olhos, de forma que os mundos físico e digital se entrelaçam em uma única dimensão, como uma realidade mista. É o que chamamos de “fígital”.
Não, este não é um cenário distante de ficção científica. Na verdade, o que acabei de descrever já está sendo testado pela Mojo Vision, uma empresa de tecnologia sediada nos EUA, fundada em 2015, que está em uma jornada para desenvolver as primeiras lentes de contato inteligentes, ou smart, do mundo. E seus resultados promissores estão aproximando a empresa do lançamento do primeiro modelo, batizado de Mojo Lens. Em março de 2022, seu primeiro protótipo ficou completo , ou seja.
Em breve, headsets ou os óculos em realidade aumentada (RA), como o Microsoft Hololens e o Google Glass, deixarão de ser as únicas opções disponíveis no mercado, pois as tecnologias da Mojo Lens são incorporadas diretamente em uma tela microLed do tamanho de um grão de areia.
Espera-se que o produto forneça um novo nível de experiência de RA através do que a empresa chama de computação invisível. Tal invisibilidade deriva do fato de que a Mojo Lens permitirá ao usuário uma experiência imersiva única no mundo da RA, já que as lentes estarão literalmente em contato direto com a superfície dos olhos. Dadas as várias tecnologias de ponta presentes na Mojo Lens, tais como a de rastreamento ocular, a empresa alega que seus usuários não precisarão pensar conscientemente em como usá-las, pois será intuitivo. De acordo com um comunicado do CEO, Drew Perkins, as lentes exibirão apenas ‘informações críticas’ para o usuário – o que quer que isso signifique – evitando sobrecarregá-lo com dados e informações irrelevantes.
Os mercados-alvo iniciais da Mojo Vision são os setores de saúde e fitness . No primeiro caso, o objetivo será ajudar as pessoas com deficiência visual, enquanto no segundo o objetivo será ajudar os atletas profissionais a acompanhar seu desempenho com mais precisão e aumentar a performance. Mercados-alvo adicionais incluem os setores da indústria, logística e hotelaria, na expectativa de que as lentes possam contribuir com o aumento de produtividade. No entanto, o objetivo final da empresa é disponibilizar a Mojo Lens para qualquer pessoa interessada em experimentar seus recursos.
Apesar dos benefícios que as lentes smart podem oferecer, tal produto levanta preocupações éticas que ainda não foram suficientemente discutidas. No entanto, é fundamental que elas sejam devidamente refletidas e sistematicamente abordadas, preferencialmente antes da entrada do produto no mercado, para que possamos antecipar e mitigar impactos, tanto coletivos quanto individuais, indesejados.
Quais são os riscos?
Com base no relatório SIENNA , que fornece uma Análise Ética das Tecnologias de Aprimoramento Humano, identifiquei quatro áreas que considero merecerem atenção imediata.
Em primeiro lugar, o grau de segurança sanitária em relação ao uso do Mojo Lens é de fundamental importância. Como lentes de contato, todos os componentes tecnológicos dela estarão em contato direto com os fluidos biológicos dos olhos, e as implicações dessa interação para a saúde humana ainda são desconhecidas. Embora a Mojo Lens esteja buscando a aprovação da Food and Drug Administration (instituição equivalente à Anvisa) para entrar em seu Programa de Dispositivos Inovadores , o qual se dedica a fornecer acesso e tratamento médico oportuno a pacientes com doenças irreversíveis ou com risco de vida usando tecnologias disruptivas, ensaios clínicos de longo prazo para uma análise minuciosa sobre a segurança do produto serão realizados, mas continua sendo um desafio definir quais serão os padrões exatos que deverão ser adotados, dado o alto grau de incerteza que o uso do Mojo Lens pode ter acarretar sobre os indivíduos.
O segundo ponto é a proteção da privacidade e a segurança da informação, que também são dois aspectos centrais dessa tecnologia. Se o Google Glass já havia introduzido controvérsias e preocupações sobre a capacidade de as pessoas gravarem tudo diretamente por ele sem o consentimento de terceiros, o que dizer da Mojo Lens, que é um dispositivo completamente imperceptível para os outros? Embora as lentes não possuam câmera, elas têm a capacidade de auxiliar pessoas com deficiência visual a identificar rostos familiares. Isso significa que as lentes podem acessar informações biométricas, possivelmente com base em uma base dados pré-definido pelo usuário, por intermédio do celular. O protótipo atual da Mojo Lens exige que o usuário use uma espécie de colar que na realidade atua como uma ponte de radiofrequência entre o smartphone e as lentes, permitindo a troca de dados entre esses dispositivos.
Da mesma forma, é imprescindível entender como esses dados serão acessíveis e tratados pela empresa e se o usuário terá controle e transparência sobre eles. Além disso, manter a segurança adequada das informações é fundamental para proteger os dados dos usuários contra tentativas de interceptação maliciosa por parte de hackers.
Uma terceira consideração ética é que, dados os diferentes domínios e propósitos nos quais o Mojo Lens pode ser adotado, é fundamental distinguir entre o uso para fins terapêuticos ou para fins de aprimoramento, pois possuem diferentes desafios éticos. O uso para fins terapêuticos tem como principal objetivo restaurar ou substituir determinadas funções corporais comprometidas ou totalmente perdidas, no caso da Mojo Lens, a visão, enquanto o uso para fins de aprimoramento tem como objetivo ampliar as capacidades cognitivas e físicas em indivíduos considerados ‘normais’, embora definir ‘normalidade’ já seja um assunto muito controverso no campo da filosofia porque seu conceito varia de acordo com o espaço e tempo. Portanto, se o uso de lentes de contato inteligentes se tornar uma nova norma no futuro, os indivíduos que não as usarem poderão ser considerados ‘anormais’ ou ‘deficientes’ por não possuírem as mesmas capacidades visuais em relação aos indivíduos que as utilizarem. Como consequência, surge aí o desafio da acessibilidade. Para quem esta tecnologia estará acessível e em quais circunstâncias?
Um risco adicional relacionado ao uso para fins de aprimoramento é quanto ao vício e dependência, principalmente se seu uso for feito sem supervisão adequada, de um médico, por exemplo. É por isso que o monitoramento cuidadoso e os ensaios clínicos com os stakeholders relevantes são cruciais para analisar e avaliar o grau de risco.
A quarta e última preocupação ética que quero destacar em relação à Mojo Lens é que a sua tecnologia tem potencial de dupla utilização, isto é, para fins militares. Por exemplo, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa dos EUA (DARPA) demonstrou recentemente interesse em lentes de contato em RA para aprimoramento militar. Pense nas possibilidades que a Mojo Lens abre para as Forças Armadas, não apenas no campo de batalha, mas também para espionagem e vigilância. O dispositivo pode permitir que os soldados em campo que façam uso das lentes tenham uma vantagem significativa sobre seus oponentes. Imagine que as lentes possam ajudá-los a identificar alvos de longa distância em ambientes com pouca luz e fornecer dados em tempo real sobre a área em que estão navegando. Para isso, é fundamental abordar quais seriam as implicações morais, físicas e psicológicas para os soldados que eventualmente usem essa tecnologia. Aqui, o campo da ética militar pode contribuir amplamente para essa discussão.
A difícil tarefa da ética
Dadas as preocupações acima mencionadas e apesar dos muitos benefícios terapêuticos potenciais que o Mojo Lens pode proporcionar aos pacientes no campo da saúde, coletar as opiniões dos stakeholders relevantes (por exemplo, por meio de pesquisas, entrevistas com potenciais beneficiários finais, palestras e workshops com especialistas) pode ser benéfico para a empresa desenvolver e orientar sua agenda de pesquisa e desenvolvimento de forma mais inclusiva, democrática e responsável.
Quanto ao uso para fins de aprimoramento, uma avaliação ética mais assertiva dependerá do contexto. No campo dos esportes profissionais, discussões sobre quais tecnologias os atletas poderão ou não utilizar para aumentar o desempenho já trazem muitas controvérsias (por exemplo, determinados hormônios que configuram doping; uso de roupas e tecidos com alta tecnologia), e a Mojo Lens seria um acréscimo a esse debate.
Para uso em ambientes de trabalho, especialmente em indústrias, a Mojo Lens pode oferecer uma experiência mais imersiva para visualizações de projetos em RA e ser útil para fins de treinamento em ambientes controlados. No entanto, os headsets e óculos em RA existentes, tais como o Google Glass e Microsoft Hololens, já podem cumprir esse papel de maneira menos invasiva ao corpo humano. Nesse sentido, uma questão pendente é avaliar até que ponto seria necessário e vantajoso expor os trabalhadores ao uso de lentes de contato smart, sem criar efeitos colaterais indesejados.
Por fim, disponibilizar a Mojo Lens para o grande público é uma questão ainda mais delicada, pois os desafios éticos e regulatórios vão muito além dos ambientes controlados. Para chegar a esse estágio, a Mojo Lens terá primeiro que provar ser segura o suficiente do ponto de vista sanitário, o que requer ainda muita pesquisa e supervisão adequada por agências reguladoras nacionais.
Discussões sobre a permissão de comercialização da Mojo Lens para o grande público também podem ser realizadas em nível político, com participação da sociedade civil organizada sobre se esse é de fato um caminho desejável a seguir. Isso pode ser feito, por exemplo, por meio de comitês legislativos especiais, assembleias de cidadãos ou minipúblicos. A adoção de estratégias participativas dá a oportunidade e o espaço ideal para que cidadãos se envolvam em considerações éticas e filosóficas sobre o significado e as implicações sociais que o uso de tal tecnologia disruptiva podem trazer. Quaisquer que sejam os resultados, esses são os desafios éticos trazidos por um número cada vez maior de tecnologias emergentes, como a Mojo Lens, as quais exigem discussões cuidadosas, e que não apresentam soluções óbvias.
*Leonardo Werner é advogado pela PUC-Rio, mestrando em Filosofia da Tecnologia pela Universidade de Twente, na Holanda, e pesquisador estratégico da Nau d’Dês. Com experiência nos mercados jurídico e corporativo, seu maior interesse hoje está em avaliar os impactos éticos das tecnologias emergentes e traduzir o conhecimento acadêmico em diretrizes práticas que auxiliem empresas e negócios na tomada de decisões responsáveis, sustentáveis e humanas.